Postagens

Novos Companheiros

Pai, faz mais de um ano desde a última vez que eu lhe escrevi algo, estive ocupado. Tem muita coisa que não lhe contei, muito aconteceu. Primeiro me desculpe por ter arrancado as páginas do diário que começamos a escrever juntos, mas era a única coisa que eu tinha pra manter o fogo enquanto passava pelos longos dias de solidão e febre. Cada página arrancada levava um pedaço de minha alma, levava a lembrança dos nossos dias, de quando meus irmãos não eram gananciosos malditos, das cavalgadas sem destino em nossos campos. Mas a página que mais doeu foi a em que meu pequeno Jonas tinha me desenhado, em seus traços de criança, com armadura prateada, elmo e espada, montado do Arauto. O Arauto ainda está comigo, e com ele consegui fugir de ter a cabeça cortada. Como teve minha Jassel. ... Perdão meu pai, mas não consigo falar sobre Jassel sem sentir o fogo e a dor. Quando esse nó sair da minha garganta contarei tudo, voltarei a lhe escrever tudo. Eu prometo. Ainda trago comigo suas ...

Linóleo

Na sala quente, de uma construção antiga, estavam lá, dezesseis pessoas estranhas entre sim, pelo menos em sua maioria. Alguns aflitos, muitos excitados, outros nervosos. Ninguém indiferente. A sala era ampla, retangular, com oito janelas duplas de cada lado, no momento fechadas por causa dos grandes e barulhentos condicionadores de ar, que no calor daquela época, pouco podiam fazer. De cada um dos lados haviam barras de ferro fixadas a parede, pintadas com tinta óleo preta, há muito tempo, tanto tempo que o preto se tornava cinza, sarapintado pelo marrom da ferrugem que se espalhava como catapora por toda a extensão da estrutura. No fim da sala, espelhos reforçavam a ilusão de imensidão da sala, fazendo-a parecer ao mesmo tempo intimidante e aconchegante. Quem entrasse ali desavisado logo se sentiria pequeno. Até se acostumar. Até vaguear os olhos e começar a conhecer a sala. Um pequeno polígono feito de teias de aranha se destacava no canto esquerdo. Era o trabalho de uma vi...

Re(re)começo

Boa noite. Bom dia. Boa tarde. Que seja bom, seja tarde da noite, dia de noite ou um dia de tarde. Pode não vir nada, mas enfim, é o recomeço, o novo início. Escrever o que?  Nunca fui poeta, então não será poesia. Na verdade nem sei se entendo poesia. Prosa? Dissertação? Conversa? Descrição? Abstrato? Pode ser, o que vier, afinal, é um recomeço. Por que? Preciso escrever por que escrever é preciso. Desaguar. Desatar. Desbravar pensamentos e ver até onde eles vão. Por que é tarefa e é paixão. Por que .... preciso. Pra quem? Pra mim, principalmente. Parcialmente. Por mim, pra quem estiver lendo, pra quem se interessar, para esse virtual papel em branco, para os paraquedistas, desavisados, inocentes que caírem aqui. Pra tu e pra nós. Eu e vós. Sobre o que? Sobre tudo. Sobre mim, sobre ela, sobre o mundo. Sobre escrever em sim, sobre ser escrito, descrever a inscrição. Sobre o exato, sobre o concreto, sobre o abstrato, sobre o comum. Sobre ...

Aqui

- Bom dia. - Bom dia! - Você sabe me dizer onde eu estou? - Bem aí. - Mas aqui onde? - Aí, ué. - Sim, mas onde é aqui? - Como assim, onde é aqui? Claro que aqui é aqui, e ali é ali. Lá é lá, e lá acolá é lá acolá. Deixe de besteiras e faça o que tem que fazer. - Eu não sei o que eu tenho que fazer! - Faça o que foi feito pra fazer, ora bolas! - Mas se eu não sei nem onde é aqui, ou ali, ou acolá, ou onde quer que seja, como diabos vou saber o que tenho que fazer aqui? - E se você não tiver nada pra fazer aqui? E se tiver que fazer ali? - Mas ali onde??? - Ali, ó! - Ali? - Não, aí não, ali! - Onde? Aqui? - Não meu amigo, não aqui, ali! - Você está me confundindo! - Vamos fazer assim, dê um passo pro lado. - Assim? - Isso. - Tá. - Agora dê dois passos para trás. - Certo. Agora um passo para o outro lado. - Tudo bem. - Agora, dois passos pra frente. - Um, dois... pronto. - E então? - Mas eu estou no mesmo lugar que estava antes!! - Pois é, mas agora você já...

Prólogo de algo sem título

Levantou-se da cama aos lamentos, não era hora de acordar, ainda não, ainda não estava claro, levantar agora não, mas o maldito controle remoto não funcionava, talvez fosse a pilha que tivesse acabado, talvez estivesse com o controle remoto errado na mão, talvez o controle estivesse quebrado, ou talvez fosse tudo isso, um controle remoto de outro aparelho, sem pilhas e quebrado, mas o fato é que por causa disso ele teve que se levantar muito mais cedo do que o era costumeiro. Precisou levantar pra desligar o ar-condicionado, estava frio demais, mas isso era comum, nessa hora ele sempre desligava o ar-condicionado com o controle remoto, só que usava o controle remoto certo, ou com pilhas, ou funcionando, algo assim, mas o importante é que ele usava o controle, o controle funcionava, o ar-condicionado desligava, e ele voltava a dormir. Era um pequeno ritual que ele chamava de pre-acordar. Funcionava assim: ele acordava por causa do frio, desligava o ar-condicionado, voltava a dormir,...

Prólogo

Pessoal, esse, se possível, vai ser o primeiro capítulo de um, talvez, livro. Deem suas opiniões. O mar jogava o navio de um lado pro outro, as vezes alto, as vezes mais alto ainda, mas nada que um marinheiro experiente não estivesse acostumado. Estavam em meio a uma grande tempestade tropical, as ondas ficavam cada vez maiores, e maiores, ao ponto de por algumas vezes chegava a cobrir a popa. Marinheiros com barris de madeira cheios de areia espalhavam pelo chão pra facilitar na hora de passarem os escovões de tirar agua, tampões de madeira pra fechar buracos causados pelo vento forte que arrancava tabuas de seus rebites, e cunhas enormes chamadas de bujões, usadas pra preencher esses eventuais espaços entre as tábuas do casco recém-escovado. O navio resistia bravamente a cada investida do oceano, persistia contra as imensas ondas verdes e salgadas. Marinheiros cantavam e bebiam rum, abaixavam as velas para não serem rasgadas pelo vento, outros lutavam com o timão pra manter o navio...

Simon, O Esquerdo.

Meu lado esquerdo não gosta de mim. Tudo bem que eu não sou lá grande fã do meu lado esquerdo, mas meu lado esquerdo realmente não gosta de mim. E quando eu digo não gostar, eu quero dizer odiar. Eu chamo meu lado esquerdo de Simon. Não que eu seja esquizofrênico, longe disso, é que quando eu era mais novo, tinha esse cara da minha escola, chamado Simon, que não gostava de mim, de jeito nenhum. Sem contar que ele parecia que só tinha dois lados esquerdos no corpo, de tão atrapalhado que era. E era feio, e babava. E o meu lado esquerdo, que de agora em diante vou chamar de Simon, me faz essas coisas, ele baba enquanto eu durmo, ele assanha meu cabelo, e ele deixa o olho aberto quando vem aquela luz forte, só pra me prejudicar. Ele tropeça de propósito, quebra as coisas, e faz tudo parecer que sou desastrado. O Simon é assim. Dissimulado e maquiavélico. E me odeia. Dia desses, caminhávamos na rua, eu e o Simon, quando esbarrei sem querer num poste, pedi ao Simon pra usar seu braço e me a...