Prólogo de algo sem título
Levantou-se da cama aos lamentos,
não era hora de acordar, ainda não, ainda não estava claro, levantar agora não,
mas o maldito controle remoto não funcionava, talvez fosse a pilha que tivesse
acabado, talvez estivesse com o controle remoto errado na mão, talvez o
controle estivesse quebrado, ou talvez fosse tudo isso, um controle remoto de
outro aparelho, sem pilhas e quebrado, mas o fato é que por causa disso ele
teve que se levantar muito mais cedo do que o era costumeiro. Precisou levantar
pra desligar o ar-condicionado, estava frio demais, mas isso era comum, nessa
hora ele sempre desligava o ar-condicionado com o controle remoto, só que usava
o controle remoto certo, ou com pilhas, ou funcionando, algo assim, mas o
importante é que ele usava o controle, o controle funcionava, o ar-condicionado
desligava, e ele voltava a dormir.
Era um pequeno ritual que ele chamava
de pre-acordar. Funcionava assim: ele acordava por causa do frio, desligava o
ar-condicionado, voltava a dormir, mas nunca caia num sono profundo demais, o
calor crescente, os barulhos da rua também aumentando enquanto o bairro ia
acordando, e a consciência de que precisava acordar logo-logo o faziam
descansar sem realmente dormir, mas também sem estar desperto. Todo esse
trabalho por que detestava ser acordado abruptamente, não havia nada pior do
que ouvir o pii pii pii pii, pii pii pii pii de um despertador raivoso logo na
hora da alvorada. Bem, haviam sim coisas muito piores, mas o aquele pii pii pii
pii entrando sem pedir licença no meio de um bom sonho e o trazendo bruscamente
para a vida real era pra ele como um peixe sendo fisgado num anzol, um anzol
gelado. Um anzol gelado e enferrujado. Imaginem esse anzol, gelado e enferrujado,
sendo empurrado goela abaixo, depois furando o seu céu-da-boca, e depois lhe
puxando com toda a força pra fora de onde quer que você esteja. Pois é, era
assim que o pii pii pii pii do despertador parecia pra ele. Um pouco exagerado,
mas cada um exagera onde quer, não é problema nosso.
O nosso problema é ele ter
acordado antes, e ter se levantado pra desligar ao ar-condicionado. Ele ter se
levantado, especificamente, foi o causador de todo o problema. Depois de
levantar, ele não conseguiu mais dormir. Nem descansar. Revirou-se de um lado
pra o outro, deitou de bruços, mudou a cabeça pra o outro lado, voltou pra
posição inicial, deitou-se transversalmente na cama, armou a rede, deitou,
testou cada um dos lados, desarmou a rede, fez seis polichinelos, correu duas
vezes em volta da cama, fez onze flexões, e quando se sentiu cansado, voltou a
deitar. Mas agora estava suado, e não conseguia dormir suado, afinal de contas,
era por isso que desligava o ar-condicionado. Decidiu ir tomar banho.
Procurou e achou dentro do
guarda-roupa a toalha verde, a com menos pelos, e que irritava menos quando
enxugava o rosto, colocou-a sobre o ombro esquerdo, abriu a terceira gaveta,
contando da esquerda para a direita, e pegou uma cueca branca, que um dia já
havia sido amarela, mas de tanto ser usada e lavada, lavada e usada, desbotou
até ficar com uma tonalidade quase branca, mas não tão branca. Contornou a cama
mais uma vez, abriu a porta do banheiro, a luz do sol já estava iluminando o
ambiente feito de mármore e vidro, e, naquela hora, banhado pelo sol, ele
percebeu que não adiantava mais tentar dormir. Olhou-se no espelho, usou o
indicador da mão direita pra levantar o lábio superior, examinou, orgulhoso, as
gengivas bem vermelhas e os dentes mais brancos que o mármore da pia, sorriu
pra si mesmo, abriu o box do chuveiro, feito de vidro branco fosco, colocou o
pé direito em cima do ralo, abriu a ducha, e a água fria o fez dar um passo em
falso.
Caiu, desastradamente e
pesadamente, sobre a fina folha de vidro branco fosco do box, que rompeu-se sem
demonstrar resistência, abriu-se em dezenas de cacos, todos pontiagudos,
estranhamente triangulares. Cada caco procurou um local diferente do corpo
dele, e ali decidiram criar abrigo pra suas pontas, e sem dó nenhum perfuraram
o a pele amendoada dele. Um pedaço maior desceu velozmente, perpendicularmente
ao chão, e com a mesma facilidade com que uma agulha fura um balão cheio de ar,
ou que um tigre assassina sua presa, rasgou-lhe a garganta violentamente. O
chão branco ficou coberto de um vermelho vivo, seguido por um outro vermelho
mais escuro, e mais espesso. Não se debateu, já havia morrido antes de tocar o
chão.
Enquanto o bólido triangular,
branco-fosco, se aproximava de sua garganta, só pensava “devia ter ficado com
frio”.
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