terça-feira, 6 de outubro de 2015

Novos Companheiros

Pai, faz mais de um ano desde a última vez que eu lhe escrevi algo, estive ocupado. Tem muita coisa que não lhe contei, muito aconteceu. Primeiro me desculpe por ter arrancado as páginas do diário que começamos a escrever juntos, mas era a única coisa que eu tinha pra manter o fogo enquanto passava pelos longos dias de solidão e febre. Cada página arrancada levava um pedaço de minha alma, levava a lembrança dos nossos dias, de quando meus irmãos não eram gananciosos malditos, das cavalgadas sem destino em nossos campos. Mas a página que mais doeu foi a em que meu pequeno Jonas tinha me desenhado, em seus traços de criança, com armadura prateada, elmo e espada, montado do Arauto. O Arauto ainda está comigo, e com ele consegui fugir de ter a cabeça cortada. Como teve minha Jassel. ...

Perdão meu pai, mas não consigo falar sobre Jassel sem sentir o fogo e a dor. Quando esse nó sair da minha garganta contarei tudo, voltarei a lhe escrever tudo. Eu prometo.

Ainda trago comigo suas posses, não deixaria-as nas mãos dos sete facínoras que hoje comandam suas antigas terras. Invadi a Mansão da Mão de Diamante, montado no Arauto, nós parecíamos a encarnação de um raio, tomei para mim o seu baú, e hoje lhe digo que a Justiça Luminosa é guiada movida pela minha mão, mas guiada pelos seus ideais. As escamas de Bahamut me protegem em cada jornada, e o escudo, Inominável como no juramento que o senhor fez, afasta todo o mal de mim. Carrego ainda comigo a Mão Brilhante da Justiça, e com essas armas que já foram suas, me transformei num flagelo para os vilões. Até que um chamado veio a mim, e eu o aceitei sem pestanejar.

Por enquanto falarei dos meus novos companheiros, do chamado que recebi. Tudo ainda é um pouco confuso pra mim, nem sei como eles podem me aceitar no meio deles, são tão poderoso, tão inteligentes e sábios. Mas me aceitaram, e e acolheram como um dos seus, e eu vou fazer de tudo pra ser tão bravo quanto eles são. Ao lado deles combati mortos que andavam, orcs imundos, até chegarmos no covil da mais assustadora criatura que eu já vi. Era um Urso-Coruja. Não, me engano, eram dois Ursos-Coruja. Poderosos, assustadores e violentos. Logos nos vimos duelando com a morte enquanto os bicos do tamanho de um punho perfuravam, e as garras como adagas rasgavam couro metal e carne. E foi então, pai, que eu senti.

Estava em meu último fôlego, as garras da criatura levaram parte de minha cota-de-malha e chegaram até minhas costelas, doeu, doeu demais. Ferro quente deslisando em cortiça, rasgou-me quase até as entranhas. Meus amigos bravamente chamaram a atenção da criatura, mas eu sentia que era o meu fim, minhas pernas tremiam e eu não conseguia nem mesmo ficar de pé sem tremer. Meu sangue pingava e escorria pela Justiça Luminosa, eu estava entregue ao meu destino, iria me encontrar com Jassel e Jonas. Mas então eu vi todos os rostos, o seu, o deles, tristes e dizendo que ainda não era minha hora. E depois eu vi, rápido como um raio nos céus, brilhou em minha frente a sagrada forma de Bahamut. E eu gritei. Pedi. Disse a ele que ainda não era minha hora. E era verdade. Sua luz veio de baixo para cima, me envolvendo num turbilhão prateado de poder, e me deu a última energia. E eu golpeei. E golpeei de novo. E mais uma vez. E num último golpe guiado pela Justiça, arranquei a asa da maior das criaturas, e ela caiu. Sei que não faria isso sozinho, sem meus amigos não conseguiria, mas naquele momento me senti especial. Senti que uma missão maior me esperava. Jassel e Jonas vão ter que esperar, mas o senhor vai ouvir mais de mim.

Coletei essa pena imensa como troféu, e estou colando na página seguinte, pra que um dia alguém possa falar de Corbin St. Justice como falavam do senhor, e espero poder inspirar alguém.

Fico por aqui, preciso agradecer a Bahamut e fazer um juramento de devoção. Consagrar meu corpo alma e armas a Ele.

Até meu pai, e que seja breve.

Corbin St. Justice, Servo de Bahamut, o mais comum dos cavaleiros.

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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Linóleo

Na sala quente, de uma construção antiga, estavam lá, dezesseis pessoas estranhas entre sim, pelo menos em sua maioria. Alguns aflitos, muitos excitados, outros nervosos. Ninguém indiferente.

A sala era ampla, retangular, com oito janelas duplas de cada lado, no momento fechadas por causa dos grandes e barulhentos condicionadores de ar, que no calor daquela época, pouco podiam fazer. De cada um dos lados haviam barras de ferro fixadas a parede, pintadas com tinta óleo preta, há muito tempo, tanto tempo que o preto se tornava cinza, sarapintado pelo marrom da ferrugem que se espalhava como catapora por toda a extensão da estrutura.

No fim da sala, espelhos reforçavam a ilusão de imensidão da sala, fazendo-a parecer ao mesmo tempo intimidante e aconchegante. Quem entrasse ali desavisado logo se sentiria pequeno. Até se acostumar. Até vaguear os olhos e começar a conhecer a sala.

Um pequeno polígono feito de teias de aranha se destacava no canto esquerdo. Era o trabalho de uma vida inteira de uma jovem aranha que havia escolhido a sala abafada como morada. Era perfeita para sua vida limitada. Grande o suficiente para não ter que disputar com suas irmãs por um pedaço de caibro, quente o bastante para se manter aconchegada, mas com ventilação ampla, típica das antigas casas rurais. Sempre um inseto desavisado entrava seguindo as correntes secas de ar, cuidando de sua própria e minúscula vida, e sempre a infante aranha o capturava. E o ciclo para aquela aranha era sempre o mesmo, tecer, esperar, predar. Tecer e esperar, esperar e pedrar.

Ela nem sequer notou os dezesseis estranhos que agora se entreolhavam tímidos, avaliavam a sala, cada um do seu jeito. Olhavam e descobriam a sala, enquanto a sala os recebia do seu jeito abrasivo e abafado. Eles olhavam e notavam.

Haviam ventiladores velhos e quebrados instalados nas paredes, com aparência de que não eram ligados a um bom tempo.

As vigas e caibros do teto eram de carvalho forte, grossas como postes, e ao contrário de tudo o mais naquela sala, estavam limpas e envernizadas. Seguravam um teto bem estruturado, de maciças telhas carmim, que aparentavam já terem sobrevivido a tudo que uma telha pudesse enfrentar.

E havia o linóleo. Linóleo negro. Um linóleo brilhoso.
Era um linóleo velho, e aparentava ser. Na verdade, parecia ter orgulho de ser como era, experiente e sábio. Ostentava todas as marcas de ter vivido sua vida e cumprido com amor sua função, e ainda ansiava por mais.
Todas as marcas possíveis do tempo e do uso estavam lá. Depressões, rasgos, mofo, costuras e remendos. Fita adesiva segurava algumas partes, e em outras os buracos eram grandes demais para serem reparados, então apenas ficavam ali, se exibindo como rugas em um rosto sábio. Como um avô que lhe sorri mesmo quando você faz uma traquinagem.

E era nesse linóleo sábio e carinhoso que todos se juntaram, cada qual com seu objetivo, para criar mágica.









domingo, 13 de setembro de 2015

Re(re)começo

Boa noite.
Bom dia.
Boa tarde.

Que seja bom, seja tarde da noite, dia de noite ou um dia de tarde.

Pode não vir nada, mas enfim, é o recomeço, o novo início.

Escrever o que? 

Nunca fui poeta, então não será poesia. Na verdade nem sei se entendo poesia. Prosa? Dissertação? Conversa? Descrição? Abstrato? Pode ser, o que vier, afinal, é um recomeço.

Por que?

Preciso escrever por que escrever é preciso. Desaguar. Desatar. Desbravar pensamentos e ver até onde eles vão. Por que é tarefa e é paixão. Por que .... preciso.

Pra quem?

Pra mim, principalmente. Parcialmente. Por mim, pra quem estiver lendo, pra quem se interessar, para esse virtual papel em branco, para os paraquedistas, desavisados, inocentes que caírem aqui. Pra tu e pra nós. Eu e vós.

Sobre o que?

Sobre tudo. Sobre mim, sobre ela, sobre o mundo. Sobre escrever em sim, sobre ser escrito, descrever a inscrição. Sobre o exato, sobre o concreto, sobre o abstrato, sobre o comum. Sobre o irreal, sobre a prosopopeia, sobre o que eu acabei de escrever e nem lembro.
Dar vida a umas pequenas criações, dar movimento a outras, andar com a vida de alguns, decidir o final de outros. Sobre nada. Sobre tudo. Escrever tudo possível sobre o nada.
Aquela flor? Verde ali no canto? Isso, aquela mesma. Descrevê-la toda, só por descrever, só pra olear a máquina criativa na ponta dos dedos.

Por que nas minhas mãos estão dez penas totalmente carregadas de tinta digital, esperando pra serem usadas, e a muito abandonadas.

Voltar a encontrar o Guardião, Pólvora, Nagash, Helena "A Hiena" e tantos outros. Mas não só eles. Voltar a Vexille, Astarac, Lancaster, toda Yotun. Passar em Lua Crescente, visitar Telleri, passear com antigos companheiros.

Mas não só isso. Sentir a sensação das palavras saindo sem ordem e com vontade própria, ser instrumento do transe criativo, criar estéticas únicas, copiar outras, modificar tantas mais.

Escrever. Escrever e escrever. 

Por que preciso. 
Pra ser mais preciso, preciso escrever pra ser.
Um ser escrito.

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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aqui


- Bom dia.
- Bom dia!
- Você sabe me dizer onde eu estou?
- Bem aí.
- Mas aqui onde?
- Aí, ué.
- Sim, mas onde é aqui?
- Como assim, onde é aqui? Claro que aqui é aqui, e ali é ali. Lá é lá, e lá acolá é lá acolá. Deixe de besteiras e faça o que tem que fazer.
- Eu não sei o que eu tenho que fazer!
- Faça o que foi feito pra fazer, ora bolas!
- Mas se eu não sei nem onde é aqui, ou ali, ou acolá, ou onde quer que seja, como diabos vou saber o que tenho que fazer aqui?
- E se você não tiver nada pra fazer aqui? E se tiver que fazer ali?
- Mas ali onde???
- Ali, ó!
- Ali?
- Não, aí não, ali!
- Onde? Aqui?
- Não meu amigo, não aqui, ali!
- Você está me confundindo!
- Vamos fazer assim, dê um passo pro lado.
- Assim?
- Isso.
- Tá.
- Agora dê dois passos para trás.
- Certo.
Agora um passo para o outro lado.
- Tudo bem.
- Agora, dois passos pra frente.
- Um, dois... pronto.
- E então?
- Mas eu estou no mesmo lugar que estava antes!!
- Pois é, mas agora você já esteve ali, acolá, bem ali, e voltou para cá.
- ...
- Você está bem?
- Estou. Ótimo. Supimpa!
- Que bom, então seja bem vindo!
- Mas bem vindo a onde, pelo amor de Deus?!
- Bem vindo a Aqui.
- Ugh.
- Amigo, você está bem? Tem uma veia enorme se formando na sua testa, parece que vai explodir.
- Estou ótimo, esplêndido!
- Não parece.
- Sério? Por que você diz isso?
- Não sei, talvez seja essa quantidade de suor pingando no chão, ou o fato de que você está mordendo a língua tão fortemente que parece que daqui a pouco ela vai se partir. Mas o que chama a atenção mesmo é o fato de que você está tremendo todo.
- Uhum.
- Uhum?
- Uhum.
- Como assim “uhum”.
- Apenas “uhum”.
- Amigo, venha aqui, deixe eu lhe ajudar com esse stress todo.
- Ahá! Ahá! Rá! Te peguei! Como eu posso ir aí, se aqui é aqui? E se aí fosse aqui, aqui então não seria aqui, seria ali, ou acolá. E acolá nunca seria ali, acolá seria acolá. E ali seria ali, e ali seria aqui, e aqui então seria bem ali, e ali seria lá e ... AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH...
- Que gritaria toda é essa?
- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH...
- Sei lá, ele está confuso, acho que perdido, não sabe onde está.
- AAAAAAAAAAAAAAEEEEEEEEHHHHHHHHHHH...
- Pobre coitado. Desorientação é algo grave.
- UUUUUUUUUUAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH...
- Pois é, não sabe nem onde é aqui.
- AAAAAAAAAAAAAQQUUUUUUUUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII...
- Ei, chorão, tudo bem por aí?
- humf, humf, humf... quem... humf é... humf você?
- Eu sou João.
- João?
- Sim, João.
- Mas como assim João?
- João, e pronto. Como em João e o Pé de Feijão, mas sem o Pé de Feijão. Só João.
- João. Tá. Tá bom. Mas e ele?
- Ele não importa mais, já não está nem aqui.
- Como assim? Ele tava aqui agorinha! Eu juro! Pra onde ele foi?
- Foi embora.
- Mas... Mas... Mas embora pra onde? E principalmente, embora de onde?
- Ele foi pra lá, e foi embora daqui.
- AH! AH! AAAAAHHH! AAAAHHHHHH!
- Começou a guinchar de novo... Pode parar com isso, é irritante.
- Desculpa.
- Tá desculpado.
- Obrigado.
- Não há de quê.
- É que o outro lá me deixou doidinho, falando de aqui e ali, aqui e ali.
- É, ele é meio lelé mesmo. Nem sabe onde ele está.
- E você sabe?
- Sim.
- Sabe mesmo.
- Sei sim.
- De verdade?
- Verdade pura.
- E onde estamos então?
- Aqui.
-...
- Amigo? Amigo? Tudo bem aí no chão?
- Hã?
- Sou eu, João. Você de repente caiu.
- Caí?
- Sim, bem aqui ó.
- ...
- Ei, ei! Não desmaia de novo! Abre os olhos!
- Me larga, vou morrer bem aqui!
- Nada disso, é proibido morrer aqui.
- Ai ai, que droga de lugar é esse que não tem nome e as pessoas nem podem morrer?
- E quem disse que aqui não tem nome?
- Você e ele!
- Ele nem tá mais aqui.
- Eu sei! Eu sei!!!!!!!!!!!!!
- Epa, não grite aqui, também não pode!
- Grito sim!
- Não é permitido gritar aqui.
- Eu grito sim, quer ver?
- Na verdade não...
- MÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!!! MÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!!! 
- Isso é um grito? Pareceu mais um balido.
- É que estou com a garganta seca.
- Se quiser, ali atrás tem água.
- Quero sim, mas ali atrás onde?
- Ali atrás, depois dali.
- Ai meu coração!
- Tudo bem aí amigo?
- Tudo... Tudo... Acho que tive mais um infarto.
- É, desorientação é difícil mesmo.
- Que desorientação que nada, eu só quero saber onde estou!
- Então, se não sabe onde está, obviamente é uma pessoa desorientada.
- Olha João, eu não sou um desorientado tá legal? Só não sei onde estou.
- Já falei, você está a...
- Para! Não vem com essa! Não vem falar que estou aqui! É claro que sei que estou aqui! Mas onde é aqui?
- Aqui é aqui.
- ...
- Seus olhos estão vermelhos, isso nunca é bom.
- Espera! Já sei! Vocês estão querendo me sacanear não é? Ficam dizendo que aqui é aqui, só pra me deixar doido, depois sai dali de trás alguém da produção do programa de câmera escondida com um papel pra eu assinar, não é?
- Acho que não hein.
- Acho que sim hein.
- Não! Claro que não!
- Amigo, calma, não se exalte. Vem, levanta, me dá a mão.
- Nunca! Vou deitar aqui e morrer.
- Não pode morrer aqui. Só pode morrer lá.
- Sniff. Sniff. Por favor, para com isso, por favor para com isso, por favor para com isso...
- Com isso o que? E segura aqui no meu braço, levanta.
- Certo. Mas que fique registrado que estou levantando por coerção, e que minha vontade mesmo era de morrer.
- Tudo bem. Anotou isso Vicente?
- Anotei sim João. No relatório diz “O Recém chegado apresenta imensa desorientação, e mesmo sabendo que não pode morrer aqui, insiste em ficar deitado no chão até morrer. Foi posto de pé com ajuda de João, mas afirma que sua vontade é de morrer”. Algo mais?
- Sim, não esqueça de mencionar o mau gosto dele para roupas.
- PERAÍ! Quem é você, de onde você veio, e o que está fazendo? E como assim mau gosto para roupas?
- Ele é o Vicente.
- Eu sou Vicente. Prazer.
- Ele veio de longe.
- Eu vim de Longe.
- Ele é o escrivão.
- Eu sou o escrivão.
- E suas roupas são bem feias.
- Sim, suas roupas são feias.
- Não tem nada de errado com minhas roupas! E onde você estava até agora a pouco?
- Claro que tem muito de errado com suas roupas. Veja bem, ninguém usa mais isso. E esses sapatos beges, que coisinhas feias!
- Que coisinhas feias, sim senhor. E eu vim de longe, mas estava aqui o tempo todo.
- Não tava não. E eles são elegantes, ok?
- Ele estava sim. E não, mentiram pra você dizendo que eram elegantes.
- Sim, eu estava aqui antes de você chegar aqui. E são bem feinhos, acredite sim.
- Eu também acho eles feios.
- Ai meu Deus, e quem é você agora?
- Oi Félix.
- Bom dia Félix.
- Oi João, bom dia Vicente. Oi novato, sou Félix.
- Não sou novato! E você faz o que? Deixa adivinhar, é o cara da produção que vai dizer pra mim que isso é uma pegadinha, certo?
- Não, estou só de passagem. Passo todo dia por aqui. Tchau João, tchau Vicente. Até mais novato.
- Tchau Félix.
- Tchau Félix.
-  Não sou novato!
- Gente boa o Félix.
- Cá entre nós João, acho ele meio exibido. Passa por aqui todo dia, só pra se exibir.
- Talvez.
- Mas enfim, vou voltar pra ali, continuar a registrar. Até logo pessoal.
- Até.
- ...
- Que foi?
- Pra onde ele foi?
- Pra lá.
- Tá. E fazer o que lá.
- Registrar.
- E registrar o que?
- O que for que aconteça.
- ...
- Para com isso. Vamos logo?
- Pra onde?
- Pra lá.
- Lá aonde?
- Lá. Depois dali.
- João.
- Oi.
- Ai, João.
- Que foi?
- Por favor...
- Por favor, o que?
- Por favor, me diz onde eu estou!
- Ora bolas, já disse várias vezes!
- Não! Não! Eu me recuso a acreditar que esse lugar seja simplesmente aqui, que esse lugar não tenha nome!
- E quem disse que não tem nome?
- Vocês!
- Nós? Nós não, e com mais certeza, não eu!
- Caramba! Você sim! E também o Vicente. E também o Félix! E aquele outro cara!
- Eu não!
- E muito menos eu!
- Sem sobra de dúvida não eu!
- Oi Raul!
- Oi Raul!
- Oi Raul!
- Raul?
- Oi João. Vicente. Félix... E oi novato.
- Já de volta Félix?
- Já sim João, só de passagem de novo. Até mais pessoal!
- Até.
- Até.
- Até.
- ...
- Também vou indo, está na ora de ir acolá.
- Tchau Raul.
- Vá com Deus.
- ...
- Até pessoal. Falando nisso, o novato tá estranho. Tá até babando.
- ...
- Eca. Vou voltar pra lá João.
- Até Vicente. Agora vejamos, vamos limpar essa baba e levantar esse novato.
- Não sou novato!
- Claro que é.
- Não, não sou.
- Sim, é. Agora segura minha não e levanta.
- Tá. Mas não sou novato.
- É sim.
- Não! Não sou!
- Você nasceu aqui?
- Não.
- Já veio aqui antes?
- Não, mas...
- Então é novato.
- ...
- Não faz essa cara.
- Que cara?
- Essa daí.
- Essa é minha cara. Não tenho outra. Que tem de errado com ela?
- Nada, só essa cara que você tá fazendo. Parece que vai chorar, está tentando assobiar e está resolvendo uma equação biquadrada ao mesmo tempo. Tudo isso chupando limão.
- Olha, vamos deixar minha cara de mão tá? Você tava dizendo que esse lugar tem um nome.
- Sim, tem.
- E por que não me disseram antes?
- Por que você não perguntou.
- ...
- Agora além de chorar e assobiar enquanto está resolvendo uma equação biquadrada e chupa limão, parece que levou uma topada no dedo mindinho. E tem alguém lhe fazendo cócegas.
- É mesmo!
- Esqueceu algo Félix?
- Não, só indo ali.
- Tchau Félix.
- Tchau João.
- ...
- Gente boa, o Félix.
- João...
- Oi.
- João...
- Diga.
- João!
- Oi.
- ...
- Agora você está chorando.
- Sniff... Sniff..
- Pelo menos não parece mais que está chupando limão.
- João...
- Pois não meu amigo!
- Ai João!
- Diga homem!
- ...
- !
- ...
- !
- João!
- Oi.
- Por favor, pode me dizer qual é o nome deste lugar?
- Claro que posso!
- E qual é o nome desse lugar?
- Aqui é Lugar Nenhum.
- ...
- Cuidado novato!
- Que barulho foi esse João?
- Acho que o novato teve um infarto e morreu.
- Mas não pode morrer aqui.
- Eu sei Vicente, acha que eu não disse isso?
- Tá, desculpa. É que registrar é muito chato.
- Eu sei. Mas cada um tem que fazer sua parte.
- Vou voltar pra lá.
- Tudo bem. Acorda amigo. Ei novato, acorda.
- ... Eu não morri? Eu juro que senti meu coração explodir.
- Você bem que tentou, mas é proibido morrer aqui.
- ...
- Para de fazer essa cara!
- Tá. Deixa só eu me sentar.
- Fique a vontade.
- Quer dizer que... que eu estou em Lugar Nenhum? É isso?
- Sim.
- Só isso, simples assim, estou em Lugar Nenhum?
- É.
- É?
- É.
- Tá.
- Tá certo.
- E agora?
- E agora?
- É!
- É?
- É ué!
- É ué o que?
- É ué, e agora?
- É ué e agora o que?
- É ué e agora o que a gente faz.
- Sei lá. Quer ir pra Algum Lugar?
- ...
- Vicente, ajuda aqui que ele morreu de novo.
- Vicente foi ali, deixa que eu ajudo.
- Obrigado Félix.
- De nada.
- Tchau Félix.
- Tchau João.
- ...
- Acordou novato?
- ...
- É impressão minha ou tá com raiva?
- Não, só tive um derrame.
- Acontece.
- O que?
- Derrames, acontecem.
- Pois é.
- É.
- Ok, pois vamos pra Algum Lugar.
- Tá, vamos nessa.
- E onde é Algum Lugar?
- É logo ali.
- ...
- Ai ai, que novato frouxo. Vicente!!!!
- Tô chegando.
- Ajuda aqui a por ele no ombro.
- Ruff, que pesado.
- Valeu Vicente.
- De nada João.
- Vou levar ele pra Algum lugar.
- Ok.
- Olha lá Vicente.
- Ih, chegou outro novato, vou avisar o Raul pra ir receber ele.
- Tá certo. Daqui a pouco vou lá.
- Tudo bem.
- Ei Raul, olha lá, mais um novato perdido.
- Xá comigo que estou indo.
- Vá que eu vou registrar.
- Ei, ei, você aí sozinho.
- Bom dia.
- Bom dia!
- Você sabe me dizer onde eu estou?
- Bem aí.
- Mas aqui onde?
- Aí, ué.
...


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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prólogo de algo sem título


Levantou-se da cama aos lamentos, não era hora de acordar, ainda não, ainda não estava claro, levantar agora não, mas o maldito controle remoto não funcionava, talvez fosse a pilha que tivesse acabado, talvez estivesse com o controle remoto errado na mão, talvez o controle estivesse quebrado, ou talvez fosse tudo isso, um controle remoto de outro aparelho, sem pilhas e quebrado, mas o fato é que por causa disso ele teve que se levantar muito mais cedo do que o era costumeiro. Precisou levantar pra desligar o ar-condicionado, estava frio demais, mas isso era comum, nessa hora ele sempre desligava o ar-condicionado com o controle remoto, só que usava o controle remoto certo, ou com pilhas, ou funcionando, algo assim, mas o importante é que ele usava o controle, o controle funcionava, o ar-condicionado desligava, e ele voltava a dormir.
Era um pequeno ritual que ele chamava de pre-acordar. Funcionava assim: ele acordava por causa do frio, desligava o ar-condicionado, voltava a dormir, mas nunca caia num sono profundo demais, o calor crescente, os barulhos da rua também aumentando enquanto o bairro ia acordando, e a consciência de que precisava acordar logo-logo o faziam descansar sem realmente dormir, mas também sem estar desperto. Todo esse trabalho por que detestava ser acordado abruptamente, não havia nada pior do que ouvir o pii pii pii pii, pii pii pii pii de um despertador raivoso logo na hora da alvorada. Bem, haviam sim coisas muito piores, mas o aquele pii pii pii pii entrando sem pedir licença no meio de um bom sonho e o trazendo bruscamente para a vida real era pra ele como um peixe sendo fisgado num anzol, um anzol gelado. Um anzol gelado e enferrujado. Imaginem esse anzol, gelado e enferrujado, sendo empurrado goela abaixo, depois furando o seu céu-da-boca, e depois lhe puxando com toda a força pra fora de onde quer que você esteja. Pois é, era assim que o pii pii pii pii do despertador parecia pra ele. Um pouco exagerado, mas cada um exagera onde quer, não é problema nosso.
O nosso problema é ele ter acordado antes, e ter se levantado pra desligar ao ar-condicionado. Ele ter se levantado, especificamente, foi o causador de todo o problema. Depois de levantar, ele não conseguiu mais dormir. Nem descansar. Revirou-se de um lado pra o outro, deitou de bruços, mudou a cabeça pra o outro lado, voltou pra posição inicial, deitou-se transversalmente na cama, armou a rede, deitou, testou cada um dos lados, desarmou a rede, fez seis polichinelos, correu duas vezes em volta da cama, fez onze flexões, e quando se sentiu cansado, voltou a deitar. Mas agora estava suado, e não conseguia dormir suado, afinal de contas, era por isso que desligava o ar-condicionado. Decidiu ir tomar banho.
Procurou e achou dentro do guarda-roupa a toalha verde, a com menos pelos, e que irritava menos quando enxugava o rosto, colocou-a sobre o ombro esquerdo, abriu a terceira gaveta, contando da esquerda para a direita, e pegou uma cueca branca, que um dia já havia sido amarela, mas de tanto ser usada e lavada, lavada e usada, desbotou até ficar com uma tonalidade quase branca, mas não tão branca. Contornou a cama mais uma vez, abriu a porta do banheiro, a luz do sol já estava iluminando o ambiente feito de mármore e vidro, e, naquela hora, banhado pelo sol, ele percebeu que não adiantava mais tentar dormir. Olhou-se no espelho, usou o indicador da mão direita pra levantar o lábio superior, examinou, orgulhoso, as gengivas bem vermelhas e os dentes mais brancos que o mármore da pia, sorriu pra si mesmo, abriu o box do chuveiro, feito de vidro branco fosco, colocou o pé direito em cima do ralo, abriu a ducha, e a água fria o fez dar um passo em falso.
Caiu, desastradamente e pesadamente, sobre a fina folha de vidro branco fosco do box, que rompeu-se sem demonstrar resistência, abriu-se em dezenas de cacos, todos pontiagudos, estranhamente triangulares. Cada caco procurou um local diferente do corpo dele, e ali decidiram criar abrigo pra suas pontas, e sem dó nenhum perfuraram o a pele amendoada dele. Um pedaço maior desceu velozmente, perpendicularmente ao chão, e com a mesma facilidade com que uma agulha fura um balão cheio de ar, ou que um tigre assassina sua presa, rasgou-lhe a garganta violentamente. O chão branco ficou coberto de um vermelho vivo, seguido por um outro vermelho mais escuro, e mais espesso. Não se debateu, já havia morrido antes de tocar o chão.
Enquanto o bólido triangular, branco-fosco, se aproximava de sua garganta, só pensava “devia ter ficado com frio”.