segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prólogo de algo sem título


Levantou-se da cama aos lamentos, não era hora de acordar, ainda não, ainda não estava claro, levantar agora não, mas o maldito controle remoto não funcionava, talvez fosse a pilha que tivesse acabado, talvez estivesse com o controle remoto errado na mão, talvez o controle estivesse quebrado, ou talvez fosse tudo isso, um controle remoto de outro aparelho, sem pilhas e quebrado, mas o fato é que por causa disso ele teve que se levantar muito mais cedo do que o era costumeiro. Precisou levantar pra desligar o ar-condicionado, estava frio demais, mas isso era comum, nessa hora ele sempre desligava o ar-condicionado com o controle remoto, só que usava o controle remoto certo, ou com pilhas, ou funcionando, algo assim, mas o importante é que ele usava o controle, o controle funcionava, o ar-condicionado desligava, e ele voltava a dormir.
Era um pequeno ritual que ele chamava de pre-acordar. Funcionava assim: ele acordava por causa do frio, desligava o ar-condicionado, voltava a dormir, mas nunca caia num sono profundo demais, o calor crescente, os barulhos da rua também aumentando enquanto o bairro ia acordando, e a consciência de que precisava acordar logo-logo o faziam descansar sem realmente dormir, mas também sem estar desperto. Todo esse trabalho por que detestava ser acordado abruptamente, não havia nada pior do que ouvir o pii pii pii pii, pii pii pii pii de um despertador raivoso logo na hora da alvorada. Bem, haviam sim coisas muito piores, mas o aquele pii pii pii pii entrando sem pedir licença no meio de um bom sonho e o trazendo bruscamente para a vida real era pra ele como um peixe sendo fisgado num anzol, um anzol gelado. Um anzol gelado e enferrujado. Imaginem esse anzol, gelado e enferrujado, sendo empurrado goela abaixo, depois furando o seu céu-da-boca, e depois lhe puxando com toda a força pra fora de onde quer que você esteja. Pois é, era assim que o pii pii pii pii do despertador parecia pra ele. Um pouco exagerado, mas cada um exagera onde quer, não é problema nosso.
O nosso problema é ele ter acordado antes, e ter se levantado pra desligar ao ar-condicionado. Ele ter se levantado, especificamente, foi o causador de todo o problema. Depois de levantar, ele não conseguiu mais dormir. Nem descansar. Revirou-se de um lado pra o outro, deitou de bruços, mudou a cabeça pra o outro lado, voltou pra posição inicial, deitou-se transversalmente na cama, armou a rede, deitou, testou cada um dos lados, desarmou a rede, fez seis polichinelos, correu duas vezes em volta da cama, fez onze flexões, e quando se sentiu cansado, voltou a deitar. Mas agora estava suado, e não conseguia dormir suado, afinal de contas, era por isso que desligava o ar-condicionado. Decidiu ir tomar banho.
Procurou e achou dentro do guarda-roupa a toalha verde, a com menos pelos, e que irritava menos quando enxugava o rosto, colocou-a sobre o ombro esquerdo, abriu a terceira gaveta, contando da esquerda para a direita, e pegou uma cueca branca, que um dia já havia sido amarela, mas de tanto ser usada e lavada, lavada e usada, desbotou até ficar com uma tonalidade quase branca, mas não tão branca. Contornou a cama mais uma vez, abriu a porta do banheiro, a luz do sol já estava iluminando o ambiente feito de mármore e vidro, e, naquela hora, banhado pelo sol, ele percebeu que não adiantava mais tentar dormir. Olhou-se no espelho, usou o indicador da mão direita pra levantar o lábio superior, examinou, orgulhoso, as gengivas bem vermelhas e os dentes mais brancos que o mármore da pia, sorriu pra si mesmo, abriu o box do chuveiro, feito de vidro branco fosco, colocou o pé direito em cima do ralo, abriu a ducha, e a água fria o fez dar um passo em falso.
Caiu, desastradamente e pesadamente, sobre a fina folha de vidro branco fosco do box, que rompeu-se sem demonstrar resistência, abriu-se em dezenas de cacos, todos pontiagudos, estranhamente triangulares. Cada caco procurou um local diferente do corpo dele, e ali decidiram criar abrigo pra suas pontas, e sem dó nenhum perfuraram o a pele amendoada dele. Um pedaço maior desceu velozmente, perpendicularmente ao chão, e com a mesma facilidade com que uma agulha fura um balão cheio de ar, ou que um tigre assassina sua presa, rasgou-lhe a garganta violentamente. O chão branco ficou coberto de um vermelho vivo, seguido por um outro vermelho mais escuro, e mais espesso. Não se debateu, já havia morrido antes de tocar o chão.
Enquanto o bólido triangular, branco-fosco, se aproximava de sua garganta, só pensava “devia ter ficado com frio”.